
No começo de 2024, Laura Maria de Oliveira, de 59 anos, trabalhava como diarista e estava satisfeita por ter conseguido um emprego de carteira assinada como empregada doméstica. No dia 1º de março, ela saiu de casa de manhã, em Cascadura, na zona norte do Rio de Janeiro, em direção à casa dos patrões na Tijuca, também na zona norte.
A empregada doméstica optou por uma moto de aplicativo para economizar cerca de uma hora no deslocamento, o que costumava ser possível porque os motociclistas cortavam o congestionamento trafegando no meio dos carros. Naquele dia, entretanto, um automóvel trocou de faixa sem dar seta, atingindo a moto que a transportava.
“Eu cheguei a ver o carro fechando a gente e apaguei. A minha sorte é que o trânsito estava muito parado e ele não estava em alta velocidade. Mas, antes disso, o motoqueiro estava correndo muito. Eu usei muito esse serviço, e, em praticamente todas as vezes, eles corriam muito e ficavam olhando o celular. Um risco muito grande.”
Laura ficou 14 dias internada esperando vaga em cirurgias para tratar diáfises de úmero e clavícula, e também reparação do nervo radial. Um ano e cinco meses depois, ela vai passar por um terceiro procedimento para retirar a placa inserida no úmero, que prejudica os movimentos do seu cotovelo.
Mesmo assim, é possível que ela não os recupere completamente. Em acompanhamento no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), ela ainda não conseguiu voltar a trabalhar.
“Estava há vários sem um trabalho com carteira assinada e tinha começado há 15 dias. E eu ainda ia fazer outro trabalho extra, como diarista. Eu tinha duas rendas.
Até passar o período de análise do INSS e obter o benefício, foi uma espera muito grande. Foi muito complicado”, lembra ela. “Pra mim, não existe mais esse transporte. Eu tenho um filho que tem moto, e nem com o meu filho eu ando mais. Não quero mais passar por isso na minha vida.”
Alternativa perigosa
O crescimento do uso de motocicletas no Brasil reflete uma alternativa perigosa encontrada por quem teve o direito à mobilidade negligenciado.
O alerta é do oficial técnico em segurança viária e prevenção de lesões não intencionais da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) no Brasil Victor Pavarino e abre a série Rota Perigosa: brasileiros se arriscam em motos por renda e mobilidade, em que a Agência Brasil discute os impactos do aumento da frota de motocicletas na segurança viária e na saúde pública.
“O que está acontecendo é uma consequência, mas também um indicador dos problemas desse sistema de mobilidade centrado e feito à imagem e semelhança de sua majestade, o automóvel. Foi pensado desde os anos 1950 dessa forma e está entrando em colapso”, critica o especialista.
Doutor em transportes pela Universidade de Brasília, Pavarino descreve que, em cidades construídas para carros particulares e com modais de transporte coletivo com abrangência ou qualidade insuficiente, a moto ganha cada vez mais espaço entre as opções de deslocamento.
Na outra ponta, famílias de menor renda adquirem as motos por serem mais acessíveis que os automóveis, e trabalhadores informais em busca de renda assumem riscos em jornadas exaustivas e sem proteção de vínculos formais ou seguridade social, como entregadores ou mototaxistas de aplicativos.
“Toda a questão do trânsito, por qualquer modal, tem uma ligação direta com as questões sociais e econômicas. Mas, no caso da moto, essa relação é gritante. De certa forma, joga na nossa cara a implicação social, econômica e trabalhista que tem a questão do transporte.”
Frota cada vez maior
A frota de motocicletas no país está em expansão. Segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo), o número de veículos motorizados de duas rodas cresceu 42% de 2015 a 2024, quando atingiu o patamar de 35 milhões de unidades no país.
Só no ano passado, o número de motos vendidas aumentou 18,6%, alcançando o maior patamar desde 2011. Para 2025, a expectativa é de mais uma alta, de 7,7%, ultrapassando 2 milhões de emplacamentos em um ano.
Se forem contabilizadas apenas as motocicletas, os veículos em circulação no país eram 29 milhões em junho de 2025, segundo a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran). Cinco anos antes, em 2020, o país tinha uma frota de 23,4 milhões, o que mostra que houve um acréscimo de quase 6 milhões de motocicletas nas ruas brasileiras.
“De certa forma, o que está ocorrendo com a moto é que um imenso segmento da população, não só do Brasil, está recorrendo a uma possibilidade de mobilidade que lhes foi negada durante décadas”, pondera Pavarino.
“É difícil a gente falar que não se pode ou não se deve usar motos, enquanto, em muitos casos, como em favelas, ela é a única forma que boa parte da população tem para chegar até sua casa e como ganha-pão”, contextualiza Pavarino.
Entre as principais respostas necessárias, o especialista em segurança viária da Opas defende medidas de impacto coletivo, como o fortalecimento do transporte público, a adoção de tarifa zero e o encorajamento dos deslocamentos por caminhada e bicicletas, por meio de cidades mais convidativas ao pedestre e ao ciclista.
Essas medidas precisam ser adotadas para que se interrompa a migração dos usuários de transporte público para as modalidades de transporte individual motorizado, entre as quais a moto é a mais arriscada.
“A moto tem, sim, seus problemas. É um veículo que é intrinsecamente mais vulnerável que os demais, por questões óbvias, porque está compartilhando o espaço viário com outros veículos de massa maior e em velocidade.
Em algumas situações, chega a ser mais vulnerável que o próprio pedestre. Mas a questão que a gente está vendo da sinistralidade com moto não é uma questão simplesmente de trânsito. É uma questão social, econômica e de trabalho, envolvendo tantas outras coisas, e que eclode no trânsito”, aponta o especialista da Opas
Na cerimônia de abertura da Conferência Nacional de Segurança no Trânsito, realizada em Brasília nesta semana, o secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, avaliou que os problemas relacionados ao uso da moto se dão principalmente em cidades médias que vivenciaram crescimento acelerado, sem que houvesse investimentos equivalentes em transporte coletivo.
Além disso, em seis estados do Norte e Nordeste, as motos representam mais da metade da frota de veículos: Piauí (55%), Pará (54%), Maranhão (60%), Rondônia (51%), Acre (53%) e Ceará (50%).
“A gente não pode tratar esse tema como se fosse de mera escolha individual. O cidadão escolhe a motocicleta porque não deram a ele uma alternativa segura. Não há bala de prata para essa questão, mas, se houvesse, seria o transporte coletivo de qualidade.”