
Eles têm nome, enxoval, certidão de nascimento e até aparecem em consultas médicas. Os bebês reborn, bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos e custam até R$ 9,5 mil, viralizaram nas redes nos últimos meses, impulsionados por vídeos que mostram as rotinas de cuidado de “mães” dedicadas.
Entre as adeptas, famosas como Britney Spears e Gracyanne Barbosa já surgiram na web embalando ou trocando fraldas de seus “nenéns”. Mas, com o sucesso, vieram as críticas, apontando a prática como um sinal de problemas psicológicos. E o que dizem os especialistas?
Para o psicólogo Marcelo Santos, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o primeiro passo para discutir o tema é não julgar ou distribuir diagnósticos. “Não dá para ‘patologizar’ automaticamente. É importante analisar quais são os contextos e as motivações que estão por trás desses comportamentos”.
Afinal de contas, a prática pode trazer benefícios: criação de comunidades, com troca de dicas e experiências; senso de pertencimento e interação social; estímulo criativo e relaxamento. Ela pode até mesmo ser usada com fins terapêuticos.
Gracyanne, por exemplo, posta vídeos, até mesmo, amamentando o seu bebê reborn Benício e comenta: “Como já disse anteriormente, meu sonho é ter um filho. Podem me julgar, no começo eu achei estranho. Mas Benício me trouxe felicidade”.
O limite entre hobby e problema de saúde está na frequência, intensidade, distorção da realidade e impacto na vida e rotina do indivíduo, diz a psicóloga Rita Calegari, do Hospital Nove de Julho.
O impacto na rotina, porém, não é a realidade da maioria das entusiastas, que se definem como colecionadoras. Para elas, os bebês são fruto de um trabalho manual complexo, como explica Andrea Janaína Mariano, 51, mãe de quatro filhos (reais) e avó.
Andrea coleciona bebês reborn há mais de uma década e organiza encontros de admiradores em São Paulo. Hoje, também é artesã – ou “cegonha”, como são chamadas as artistas que fazem os bebês – e vende os bonecos.
“As pessoas acham que vamos aos encontros brincar de boneca, mas isso não acontece. Somos artistas, colecionadoras e pessoas que têm interesse em conhecer essa arte, que se reúnem para compartilhar informações”, conta sobre as reuniões no Parque do Ibirapuera.
Além disso, muitos dos vídeos virais que mostram cuidados com os bebês como se fossem reais são apenas encenações, os chamados “role plays”, feitos para apresentar a arte ou gerar engajamento. “É apenas um teatrinho; depois elas guardam as bonecas. Ninguém vive essa realidade”, diz Andrea.
Ainda assim, perguntada se conhece alguém que cuida em excesso dos bebês ou trata os bonecos como reais, Andrea afirma que sim, embora sejam “raros casos”.
Quando há algo errado?
Rita é enfática sobre o assunto: “Mulheres que apenas usam, colecionam ou brincam com as bonecas como um momento de relaxamento não têm problema nenhum”.
Como explica o psiquiatra Alaor Carlos de Oliveira Neto, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, um hobby é saudável quando enriquece a vida, proporcionando alegria e aprendizado sem gerar consequências negativas em outras áreas.
Cruza-se a fronteira entre o hobby e um possível desequilíbrio emocional quando não se distingue o cuidado fantasioso da realidade ou a interação com a boneca afeta as responsabilidades diárias. Algumas atitudes que merecem atenção especial, segundo Neto, são:
. Trocar os relacionamentos com outros humanos pelo apego à boneca, buscando no objeto carinho e afeto;
. Deixar de cumprir responsabilidades do dia a dia, como trabalhar e estudar, para ficar com o brinquedo;
. Gastar muito dinheiro com bonecas e acessórios, o que pode causar problemas financeiros;
. Se infantilizar ou tratar a boneca como se fosse um bebê de verdade de forma consistente, o tempo todo, perdendo a noção de que é uma brincadeira ou coleção;
. Usar o brincar para evitar lidar com problemas emocionais, traumas, situações difíceis ou a realidade da vida;
. Usar a brincadeira para fugir de sentimentos como solidão, ansiedade ou tristeza.
Além desses sinais, Santos também destaca que sentimentos extremos são preocupantes, como reações exageradas às críticas. “A pessoa pode entrar numa depressão achando que está passando por um preconceito em relação ao seu filho, que, neste caso, é o boneco. Isso é um sinal de alerta”, diz.
Outros exemplos de que a situação “passou do ponto” envolvem a preocupação por deixar os bonecos em casa “sozinhos” durante o expediente de trabalho ou não vivenciar momentos com as pessoas reais para se fazer mais presente para os brinquedos.
Por que a conexão com o boneco?
E o que pode levar um adulto a criar conexão emocional com um boneco? Para os especialistas, são aspectos como a necessidade de promover cuidado e fornecer proteção a algo ou alguém; o sentimento de solidão, isolamento ou vazio; e o desejo de vivenciar, de algum modo, a maternidade ou paternidade sem a responsabilidade atrelada a essa vivência.
A interação com o bebê reborn pode ainda oferecer regulação emocional, conforto e segurança em momentos de estresse e ansiedade. Já outros podem encontrar no boneco uma fonte segura e incondicional de “afeto”.
Os brinquedos também podem servir como ferramentas terapêuticas para lidar com o luto ou o Alzheimer, por exemplo. “A maior queixa que ouvimos de mães de natimortos nos hospitais é que elas não tiveram a chance de segurar os seus filhos. O luto sem corpo é um dos piores a ser elaborado”, comenta Rita. Por isso, segundo a psicóloga, o cuidado com os bonecos pode ser um aliado.
Espanto é questão de gênero?
Rita ressalta que o ato de brincar ou colecionar brinquedos é muito comum no universo masculino, mas não gera a mesma repercussão que as mulheres com bonecas. “Não vemos nenhum movimento de condenação social quando homens brincam”, compara.
A psicóloga lembra que muitos homens possuem hobbies tão caros quanto um bebê reborn, como aeromodelismo, kart ou videogames de última geração. Outros colecionam itens de Star Wars ou Lego.
“Então, qual é o problema das mulheres brincarem com suas bonecas que parecem um bebezinho? São mulheres que trabalham, ganham dinheiro. Não precisam comprar uma boneca barata; elas podem comprar o melhor, assim como um homem compra o melhor videogame”, diz a psicóloga.
Há ainda críticas que apontam que as colecionadoras deveriam gestar ou adotar filhos reais. “Já tem padres e pastores falando mal da gente, que precisamos de filhos de verdade. Mas isso é só um hobby, uma arte. Eu já tenho os meus filhos e até netos”, desabafa Andrea.
“Também estamos falando de empoderamento feminino”, afirma Rita. “A mulher pode escolher não ser mãe e, inclusive, escolher brincar de ser mãe – e não assumir esse papel com toda a seriedade que ele exige.”