
O Brasil, no exercício de sua presidência do Brics, recebeu a Reunião de Assessores de Segurança Nacional do grupo, um fórum de alto nível que ocorre desde 2009 e reúne as principais autoridades responsáveis pela supervisão de questões estratégicas nos países-membros.
A reunião, na sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, contou com as autoridades responsáveis pelas agendas de defesa e política externa dos países do Brics em um momento considerado crítico para a segurança internacional. O evento, que integra o calendário de cerca de 20 reuniões ministeriais previstas durante a presidência brasileira do Brics em 2025, teve como eixo a discussão sobre novas realidades de segurança e o papel do grupo na promoção da paz e do multilateralismo.
O embaixador Celso Amorim, assessor-chefe de Segurança Institucional da Presidência da República do Brasil, representante brasileiro no encontro, abriu a reunião com um discurso que resgatou a trajetória do Brics enquanto alternativa à ordem unipolar.
“Na primeira vez que o Brasil presidiu o Brics, em 2010, recebemos neste mesmo edifício os líderes dos membros fundadores. O mundo de então era diferente, mas já apontávamos para a necessidade de uma ordem global multipolar, equitativa e democrática”, recordou.
Amorim destacou que a expansão recente do Brics, com a incorporação de novos membros, comprova a vitalidade desse projeto. “Não aspiramos a uma nova Guerra Fria, nem à perpetuação de um mundo unipolar. Nosso caminho é o do multilateralismo efetivo, baseado no direito internacional”, argumentou.
O tom do discurso refletiu a percepção compartilhada entre os membros do Brics de que o mundo vive uma encruzilhada histórica e atravessa um período de crescentes tensões, com a retomada de disputas geopolíticas, além de guerras e conflitos internos. O número de vítimas de conflitos armados tem crescido de forma significativa nos últimos anos, ao lado de crises humanitárias que exigem uma atenção redobrada dos países do Brics.
Dados apresentados durante a reunião revelam que os gastos militares globais atingiram a cifra recorde de US$ 2,4 trilhões em 2024, enquanto os recursos destinados ao combate à fome, à mudança do clima e à preparação para novas pandemias permanecem insuficientes.
“Estamos testemunhando o esgarçamento das normas que por décadas regularam as relações entre Estados. Guerras comerciais, sanções unilaterais e a erosão dos mecanismos de solução pacífica de controvérsias nos colocam diante de riscos existenciais”, alertou o embaixador Amorim.
Os conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio também ocuparam lugar nos debates. O assessor brasileiro reiterou a importância dos Entendimentos Comuns Brasil-China para uma resolução pacífica do conflito na Ucrânia, documento conjunto lançado em maio de 2023 que defende a criação de condições para um cessar-fogo abrangente.
“Saudamos as recentes iniciativas de paz e acreditamos que, no momento oportuno, essas discussões devem ser multilateralizadas”, declarou Celso Amorim. Sobre a crise em Gaza, foi unânime a condenação às violações dos direitos humanitários internacionais, e que o Brics não pode ficar indiferente, afirmaram alguns participantes.
As transformações no campo da segurança tecnológica emergiram como outro eixo prioritário. O avanço da inteligência artificial aplicada a sistemas de armas e a proliferação de ameaças cibernéticas exigem, segundo os debatedores, uma resposta coordenada.
“O potencial da IA para o progresso humano é imenso, mas seu uso militar sem controle representa um perigo civilizatório. A supervisão humana sobre sistemas autônomos letais não é negociável”, sustentou Amorim. Nesse contexto, ganha relevância a negociação em curso de um Memorando de Entendimento entre os países do Brics para fortalecer a cooperação entre suas equipes de resposta a emergências cibernéticas.
O papel dos países do Brics na mediação de conflitos
Outra sessão da reunião, intitulada “O papel dos países do Brics na prevenção e mediação de conflitos”, aprofundou o debate sobre como o grupo pode contribuir para a solução pacífica de disputas internacionais. Celso Amorim ressaltou que, no novo mundo multipolar, a mediação e a prevenção de conflitos deixaram de ser atribuição exclusiva das grandes potências. “Países do Sul Global, como os membros do Brics, têm demonstrado repetidamente possuir as credenciais necessárias para contribuir com esforços de solução pacífica de controvérsias”, afirmou.
O embaixador lembrou que a atuação internacional do Brasil é independente, sem alinhamento a nenhum bloco. Citando o diplomata San Tiago Dantas, cujo nome batiza a sala onde ocorreu a reunião, Amorim destacou: “Ele defendia que o Brasil não poderia ser um mero espectador no conserto das nações. Esse é o ideal que nos inspira a agir para além de nossa circunstância imediata”.
O embaixador também enumerou a longa tradição brasileira em missões de paz da ONU, desde a primeira força de paz em Suez, em 1956, até a atual Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo, comandada por um general brasileiro. “Durante 13 anos, coube ao Brasil o comando militar da missão no Haiti”, recordou.
A paz na América do Sul, segundo o embaixador, é a base que sustenta a atuação global do Brasil. “Não é possível se concentrar em outras crises quando não há paz em sua própria vizinhança. Priorizamos a integração na América do Sul por acreditarmos que a integração é um vetor de paz”.
Ele destacou que o Brasil resolveu suas disputas fronteiriças com dez países de maneira pacífica, recorrendo à negociação e, em diversos casos, à arbitragem internacional.
Nos últimos anos, o Brasil tem atuado ativamente na mediação de conflitos regionais. Nos dois primeiros anos após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter chegado ao governo, o país esteve envolvido em conversas, juntamente com outros países da América Latina. O assessor de segurança nacional também destacou os esforços brasileiros para consolidar a América Latina como uma zona de paz.
A região é uma zona livre de armas nucleares, consagrada no Tratado de Tlatelolco de 1967. Por iniciativa brasileira, em 1986 foi estabelecida a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, que promove a cooperação entre 24 países sul-americanos e africanos.
Desafios globais e o futuro do Brics
O embaixador Celso Amorim ressaltou que a atuação do Brasil não se restringe ao seu entorno geográfico. Segundo ele, na primeira década deste século, o país esteve envolvido no processo de paz no Oriente Médio, participando da Conferência de Annapolis.
Também, juntamente com a Turquia, foram empenhados esforços para encontrar uma solução pacífica para a questão do programa nuclear iraniano. Com o tema novamente em pauta, o embaixador renovou o chamado por uma solução negociada.
Sobre a guerra na Ucrânia, Amorim reiterou o compromisso brasileiro com uma solução diplomática. Ele diz que, desde que o presidente Lula retornou ao governo, o país contribuiu para uma saída pacífica, e que o posicionamento brasileiro está sintetizado nos Entendimentos Comuns de Seis Pontos Brasil-China, que defendem o diálogo direto entre as partes, a desescalada do conflito e a rejeição a ataques a instalações nucleares.
“Dado seu peso geopolítico, os países do Brics continuarão a ser chamados a mediar conflitos. Seria muito interessante se pudéssemos lançar, no âmbito do grupo, uma discussão sobre técnicas e melhores práticas de negociação”, sugeriu.
O encontro reforçou o compromisso do Brics com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional. O grupo se posiciona contra a politização de organismos multilaterais e defende a ampliação de mecanismos de mediação de conflitos que incorporem as perspectivas dos países em desenvolvimento. A justificativa é a vasta experiência em negociação de cessar-fogo, desarmamento e operações humanitárias. Essa expertise deve ser melhor aproveitada, avaliam os negociadores.
A Reunião de Assessores de Segurança Nacional em Brasília serve como preparação para a Cúpula de Líderes do Brics, marcada para os dias 6 e 7 de julho, no Rio de Janeiro. A avaliação dos participantes é de que a presidência brasileira conseguiu avançar em sua agenda prioritária de posicionar o grupo como ator central na governança global.
Ao encerrar os trabalhos, Amorim citou as palavras do Papa Francisco em sua última mensagem de Páscoa: “Apelo aos que têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo, mas usem os recursos disponíveis para combater a fome e promover o desenvolvimento. Estas são as armas da paz”.
A fala sintetizou o espírito de uma reunião que buscou, acima de tudo, afirmar o Brics como força construtiva em um mundo que passa por algumas encruzilhadas. Com isso, a presidência brasileira reafirma o compromisso do Brics com uma ordem internacional justa e inclusiva, baseada no respeito ao multilateralismo e na busca incessante da paz.