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Observador Militar e os desafios da competência comunicacional em missões da ONU

Um relato de experiência vivida pelo major do Exército Brasileiro

Atividade no vilarejo de Kpeaba na fronteira com a Guiné. (Foto: Arquivo pessoal)

Para desempenhar a função de Observador Militar das Nações Unidas na Costa do Marfim, este autor relata que foi investido no desenvolvimento da sua capacitação linguística e constatou-se, a importância dessa qualificação para o desempenho de sua missão individual, pois a competência comunicacional é essencial nesse tipo de missão.

Durante seu mandato, teve a oportunidade de trabalhar em dois Team Sites1, ambos no norte de Côte D’Ivoir, no Tengrela Team Site, de fevereiro até abril e no Odienne Team Site , de maio até o final da missão. Do exposto, este artigo tem a finalidade de relatar a importância da competência comunicacional em missões de Observador Militar da ONU, baseado em um relato de experiência.

1 Equipe local. Team Site (TS) é o termo utilizada para definir os postos dos Observadores Militares. Ex: Odinne Team Site (Odienne TS).

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é ressaltar a importância da competência comunicacional no desempenho de missões individuais da Organização das Nações Unidas (ONU), baseado no relato de experiência do autor no desempenho da função de Observador Militar na Operação das Nações Unidas para a Costa do Marfim (ONUCI), no período de janeiro de 2016 a fevereiro de 2017.

O avanço tecnológico que se mostra principalmente por meio das mídias, diminui não apenas as barreiras econômicas, linguísticas e culturais, mas também as distâncias, aproximando virtualmente as pessoas e difundindo informação e conhecimentos elaborados em diferentes línguas.

Segundo Pereira2 , o continente africano é o que possui a maior quantidade de etnias e de dialetos falados no mundo. São muitas subvariações de grandes grupos étnicos que tem o seu próprio dialeto, cultura etc. Atualmente a África possui cerca de 2092 línguas faladas, número que corresponde a 30 por cento das línguas faladas no mundo, além de 8 mil dialetos regionais.

Costa do Marfim em destaque no mapa. (Foto: reprodução/Google Maps)

Essa variedade linguística faz com que o africano já nasça com a necessidade de se comunicar em outro idioma além de sua língua/ dialeto materno e possua uma habilidade comunicacional ímpar. Em muitas cidades, além do idioma do colonizador, existem mais três dialetos falados, fora as línguas estrangeiras faladas na escola, como é o caso da cidade de Tingrelà, na Costa do Marfim, onde 60 por cento dos moradores são de etnia senoufó, 30 por cento da etnia malinké e 10 por cento de outras etnias, sendo o francês o idioma oficial do país, língua do colonizador.

Os escravos africanos que chegavam ao Brasil eram divididos por sua etnia, a fim de evitar que se unissem e se rebelassem, além de terem a língua portuguesa como idioma imposto pelo colonizador. Essa divisão dos grupos étnicos e a imposição do idioma ajudou a evitar uma rebelião dos escravos no Brasil, como a que ocorreu no Haiti no final do século XVIII.

A colonização do continente africano não levou em consideração os seus grupos étnicos, causando divisão e divergências entre eles, que, posteriormente, eclodiriam em guerras civis, instabilidade e divisões, que persistem até os dias atuais. Dos anos 2000 em diante a África francófona tem passado pelos problemas supracitados. Países como Costa do Marfim, Mali e República Centro-Africana (RCA) tiveram missões da ONU instaladas buscando estabilizá-los3.

Essas missões têm caráter multidimensional e multicultural, em que além do cumprimento stricto da missão, procura-se mostrar para a comunidade local, que pessoas de diferentes culturas e religiões e que falam idiomas diferentes podem cumprir uma mesma tarefa.

No caso da ONUCI eram mais de 140 nacionalidades envolvidas, um ambiente multicultural e multiétnico, todos se comunicando em inglês e boa parte em francês, o que destaca a importância da competência linguística para o desempenho dessas missões.

Para atingir ao objetivo proposto, inicialmente será abordada a missão e suas peculiaridades. Em seguida uma fundamentação teórica sobre comunicação, antropologia e cultura do cenário em pauta e, por fim, o relato da experiência linguístico-comunicacional do autor.

2 Flora Pereira da Silva – jornalista e criadora do site Afreaka. Essas informações são de seu artigo A diversidade Linguística Africana e suas heranças na formação do português do Brasil (citado nas referências).
3 Costa do Marfim : ONUCI-2004; Mali :MINUSMA 2013; República Centro Africana: MINUSCA- 2014

1 – A MISSÃO

A Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim inciou em 2004, visando colocar em prática o Acordo de Linas Marcoussi4, para reestabilizar o país, que havia iniciado uma guerra civil entre o norte e o sul. Desde o ano de 2005 o Brasil começou a mandar military observers e staff officers5 para essa missão.

Em 2010, o país passou por nova instabilidade causada pelo não reconhecimento da vitória eleitoral de Alassane Ouattara por parte do então Presidente Laurent Gbagbo, sendo necessária a intervenção da ONU para garantir a assunção de Ouattara no cargo. Cinco anos depois ele foi reeleito e em 2016 o país passou por eleições legislativas. Nesses dois últimos processos eleitorais o país se manteve estável e a missão se encerrou em junho de 2017.

Os observadores militares são oficiais qualificados nos seus países a cumprir uma missão de natureza diplomática, pois trabalham desarmados e o diálogo é a sua principal arma. São responsáveis por monitorar acordos de cessar-fogo, monitorar se o mandato da missão está sendo respeitado, se não há restrição de movimento, estabelecer contato com as forças de segurança locais, além das atividades de observar, monitorar, avaliar e assessorar. Esses militares, além de representar os seus países, representam também a Organização das Nações Unidas.

Um dos trabalhos do Observador Militar em missão na ONU é monitorar a situação das vilas que estão em sua área de responsabilidade, por intermédio de uma pesquisa que coleta dados de natureza cultural, política, econômica etc.

Este é um dos trabalhos mais gratificantes da missão, pois quando a equipe chega em uma vila, pode-se perceber a esperança nos olhos dos moradores, o que reflete uma grande responsabilidade. Ter a oportunidade de ser o intermediador destas entrevistas é uma experiência ainda mais gratificante e admirada pelo povo visitado.

4 Assinado em 24 de janeiro de 2003, tal acordo possuía um anexo que objetivava a busca de soluções para as principais causas de instabilidade na Costa do Marfim: a questão da cidadania marfinense, o estatuto dos estrangeiros, as condições de elegibilidade para participar da corrida presidencial e o combate à mídia que incitava a população à raiva e a atitudes xenófobas. (fonte: www.onuci.org)
5 Observadores Militares e Oficiais de Estado-Maior.

2 – COMUNICAÇÃO, ANTROPOLOGIA E CULTURA

2.1 Antropologia e Linguística
Segundo Rivière (2014), a Antropologia é a ciência que se propõe à investigação das origens sociais, do desenvolvimento cultural e das semelhanças estruturais das sociedades humanas, assim como as suas diferenças. Divide-se em vários ramos, biológica, histórica, econômica e cultural, sendo que esta última dedica-se ao estudo das sociedades humanas do mundo. Um campo muito importante da antropologia cultural é a linguística, que estuda a história e a estrutura da linguagem.

A linguística é especialmente valorizada porque os antropólogos a utilizam para observar os sistemas de comunicação e aprender a visão de mundo das pessoas, permitindo coletar histórias orais de um grupo estudado, o que contribui como fonte cultural e histórica para o meio acadêmico. A história oral é constituída na sociedade a partir da poesia, das canções, dos mitos, provérbios e lendas populares. A língua no século XIX não deixa de ser aprendida simultaneamente como instituição social e tesouro de uma civilização, pois é elemento essencial da tradição, tem a sua vida própria dos pontos de vista fonológico (os sons), sintáctico (construção da frase), semântico (sentido das palavras)…, como escreveu Ferdinand de Saussure6 foi um dos primeiros a entender a língua como um sistema de relações interdependentes e a dar autonomia à linguística, considerando que esta linguística se torna estrutural quando se considera a língua como um código e um produto do espírito humano. (RIVIÈRE, 2014, p.22).

Segundo Coça (2009, p.51), o significado linguístico é baseado no uso e na experiência, o que significa assumir que a experiência da linguagem é uma experiência do uso linguístico real, e não de listas de palavras ou sentenças. Outro ponto importante é que o compromisso cognitivista de recorte do objeto de estudo com base na experiência linguística real é estendido também aos conceitos teóricos que fundamentam a pesquisa na área. Essa experiência baseada no uso da língua permitiu o aprimoramento do estudo da antropologia, que teve como pioneiro Franz Boas, o verdadeiro fundador da antropologia cultural norte-americana, investigador de campo, céptico a respeito das generalizações, Boas, cuja obra ultrapassa o difusionismo, observa e descreve os factos humanos concretos (entre outros, a economia sumptuária do potlatch quaquiútle), as línguas e os mitos (que Lévi-Strauss7 reinterpretará) visando a exaustividade, mas sem literatura. Deste colecionador, que elegiu enorme acervo de informações sobre os Índios da América do Norte e que formou uma plêiade de investigadores, quando na Universidade de Columbia, ensinou as estatísticas e as línguas índias, resta apenas uma doutrina do que uma atitude a respeito dos fatos, expressa em numerosos artigos reunidos pelo autor em Race, Language and Culture (1940). Neles, rejeita as distinções evolucionistas entre raça inferior e raça superior, psicologia elementar ou desenvolvida, cultura rudimentar ou evoluída e demonstra que elementos culturais viajam sozinhos, isolados e não em blocos ou por pacotes, o que levou a teorizar sobre a relação entre variabilidade histórica e invariantes culturais e a demonstrar que uma cultura relativamente integrada não consegue absorver seja o que for (RIVIÈRE, 2014, p. 42).

6 O primeiro teórico a estudar a língua como instrumento de linguagem;
7 Foi influenciado por Saussure.

2.2 Aspectos culturais da Costa do Marfim
A Costa do Marfim é uma República parlamentarista e seu atual presidente é Oualassane Ouattara, que está no seu segundo mandato desde 2016. O lema do país é união, disciplina e trabalho. A moeda é o franco-cefar, uma moeda ainda da época colonial, comum a todos os países francófonos que estão em sua maioria na África Ocidental. Apesar do país ter tornado-se independente em agosto de 1960, continua a ser dependente economicamente da França, seu principal parceiro comercial. Possui uma das melhores infra-estruturas do oeste da África, com portos, aeroportos e boa ligação de estradas. Possui uma economia voltada para o primeiro setor e é o maior produtor de cacau do mundo.

Feira livre em Odienné mostra um pouco do lado cultural da Costa do Marfim. (Foto: Arquivo Pessoal)

O Norte da Costa do Marfim é majoritariamente muçulmano, enquanto que o sul é de maioria cristã. É notória a diferença entre as regiões norte e sul: o norte é agrário e rural enquanto que o sul é mais urbano e portanto tem a maior concentração da população.

O país possui mais de 60 etnias que são derivadas de quatro grandes grupos, Alan, Kourou, Mande e Voltaic. Essa diversidade contribui para uma riqueza cultural, expressada por meio de seus diferentes dialetos, danças e produtos de artesanato. O país também possui dois reinados, o reinado de Bouna e o de Krindjabo, localizados a nordeste e sudeste da Costa do Marfim, respectivamente. Atualmente esses reinados possuem apenas o valor da tradição, mas detêm o respeito da população e das autoridades do país.

Os principais pratos típicos são o atiekê (derivado da farinha de mandioca, uma espécie de farinha úmida), o alokô (banana nanica frita em pequenos pedaços), o foutou (uma massa de banana batida no pilão com mandioca, em forma de bolinhos) e o foufou (similar ao foutou, feito somente com banana). Os dois primeiros pratos podem ser acompanhados de carne, peixe ou frango fritos e os dois últimos de carne, frango ou peixe com molho, mas todos eles são comumente acompanhados de pimenta. Como o país tem deficiência de proteína animal e o preço da carne é alto, normalmente, a maioria dos marfinenses consomem esses pratos apenas com molho ou pimenta.

Os dois Team Sites em que este autor relata sua experiência na missão localizam-se no norte da Costa do Marfim, nas cidades de Tingrelà e Odienné (ver figura abaixo), e, como abordado anteriormente, essa região é majoritariamente muçulmana, com cerca de 80 por cento da população adeptos dessa religião.

A seguir será mostrada na Figura 1 a foto do flagrante de uma festa comemorativa pelo término do Ramadã8, realizada na vila de Kouroukouru, no noroeste da Costa do Marfim, a cerca de 20 Km de Odienné e na figura 2, o mapa da Costa do Marfim, para auxiliar na contextualização.

8 Ramadã é o jejum de 30 dias dos muçulmanos, período em que não podem nem comer nem beber do nascer ao pôr do sol.

3 – UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

3.1 Preparo
Em maio de 2014, este autor foi selecionado para cumprir a missão de Assessor de Engenharia na UNISFA9 , uma região neutra entre o Sudão e o Sudão do Sul. A previsão para início da missão era junho de 2015, tempo suficiente para fazer um bom planejamento.

O primeiro passo para preparação da missão foi buscar informações com os militares que estavam cumprindo a missão e todos questionavam como estava com o inglês, devido ao fato deste ser o idioma oficial de missões das Nações Unidas. Quanto mais conversava com diferentes colegas que, ou estavam em missões da ONU ou já tinham passado por essa experiência, todos relatavam a importância da comunicação e do relacionamento interpessoal para o desempenho de missões individuais. Logo, deduziu-se que essas habilidades seriam essenciais para um bom desempenho da tarefa que a mim tinha sido atribuída.

Para o então Major Lemkuhl, Observador Militar na ONUCI em 2015, é essencial que militares apresentem a capacidade de dominar mais de um idioma estrangeiro, pois tal capacidade torna possível que integrantes do Exército Brasileiro assumam cada vez mais posições de destaque nas operações sob a égide de organizações internacionais.

Em setembro de 2014, foi iniciado o Estágio de Preparação para Missões de Paz (EPMP), que tem por objetivo preparar os militares selecionados para cumprir missões da ONU individuais, tais como Military Observer ou Staff Officer10.

O estágio, naquela época, era dividido em duas partes, a primeira um estágio de inglês, a apartir do qual o estagiário deveria desenvolver suas quatro habilidades da competência e na segunda fase, um estágio preparatório para a missão, conduzido pelo Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), com instruções ministradas em inglês, utilizando a linguagem oficial da ONU, de modo a proporcionar uma experiência similar ao induction training11.

Ciente dessa necessidade de aprimorar a comunicação, fez-se necessária a contratação de uma professora de inglês, oriunda das Filipinas, que lecionava via Skype, a fim de complementar o preparo. Foi percebida uma considerável melhora no desempenho no decorrer do Estágio, evidenciada na apresentação final por término da primeira fase, realizada no atual Centro de Idiomas do Exército, que consistia em uma apresentação do cenário e das peculiaridades da missão que iria cumprir. Toda a instrução foi ministrada em inglês.

O EPMP encerrou em outubro de 2014 e percebeu-se a qualidade do preparo para o cumprimento de uma missão individual: uma semana de avaliação e preparação psicológica, um mês com aulas de inglês, um mês com instruções também em inglês num ambiente parecido com o da ONU, o acompanhamento do Comando de Operações Terrestres (COTER), as palestras de militares que já haviam cumprido missões individuais, a cautela de material para a missão, as vacinas, a instrução acerca de encargos administrativos etc. A excelência e o alto investimento no preparo dos militares que cumprem missões de paz reflete uma alta responsabilidade em bem cumprir a missão para a qual foram designados, assim como a obrigação de bem representar o país.

A previsão para embarque estava prevista para o mês de junho de 2015. No entanto, no mês seguinte, o Comando do Exército enviou um documento no qual informava que a missão havia mudado para a de Observador Militar na Costa do Marfim, com previsão de embarque para janeiro de 2016. A notícia foi recebida como incentivo para o cumprimento da missão, tendo em vista já ter iniciado o estudo do francês, idioma oficial daquele país.

9 United Nations Interim Security Force for Abyei. Missão de garantia da região de Abyei, zona neutra entre o Sudão e o Sudão do Sul.
10 Oficial de Estado-Maior
11 Treino inicial, realizado para os militares recém-chegados nas missões da ONU.

3.2 Início da Missão
No dia 19 de janeiro de 2016, houve o desembarque em Abidjan, capital econômica da Costa do Marfim, cidade sede do quartel general da ONU, juntamente com outros dois colegas observadores. Todos foram recebidos pelos brasileiros que estavam cumprindo missão de staff officer12 em Abidjan13 : 01 oficial do Exército, 01 da Marinha e 01 da Aeronáutica. Nesse tempo em que fez-se necessário permanecer em Abidjan para realizar o check in14 , não foi sentido o impacto do idioma, pois era possível conversar entre compatriotas (três observadores e três staff officers).

Após estabelecer contato com o Coronel Robert (polonês), Team Leader de Tengrela TS, posto para o qual havia sido designado, foi agendado para o dia primeiro de fevereiro o deslocamento para Tengrela, que consistia num percurso de 3 horas de vôo até a cidade de Korogho e mais 3 horas de carro até a cidade de Tengrela.

Em uma das muitas vistas aos povoados da região. (Foto: Arquivo pessoal)

Ao chegar em Korogho, dois MilObs de Tengrela TS já nos aguardavam, o Team Leader e o Major Roman (romeno), juntamente com o Cel Nyelson (togolês), que também havia sido designado para Tengrela Team Site. Em seguida deslocamo-nos para o almoço num local de precárias condiçoes de higiene, onde nos informaram que passaríamos no supermercado para comprar mantimentos devido à carência tanto de estabelecimentos no local da missão quanto de mantimentos, e que deveríamos realizar um briefing de segurança em Korogho Camp15.

Após cumprir todas essas atividades, deslocamo-nos por estrada para a cidade de Tingrelá, a cerca de 300 Km de Korogho. No percurso conversávamos em um inglês com diferentes sotaques (polaco, romeno, togolês e português). A missão estava começando e os desafios da comunicação iniciavam-se.

12 Oficial de Estado-Maior
13 Capital econômica da Costa do Marfim. Possui 5 milhões dos 20 milhões de habitantes do país, segundo o Censo de 2014.
14 Processo de chegada na missão da ONU, em que são realizadas as medidas administrativas inerentes à missão e é realizado o treino inicial (induction training) e o teste de direção (driving test).
15 Base da ONU encarregada de dar suporte a Tengrela Team Site e a outros postos dessa região.

3.3 As reuniões de segurança
Na cidade de Tengrela, havia grande circulação de estrangeiros, interessados na exploração ilegal de ouro, minério abundante na região. A proximidade com o Mali (5 km), país que enfrentava instabilidade e ocorrência de muitos atentados terroristas, somado a essa grande circulação de estrangeiros, fez com que as autoridades locais aumentassem a preocupação com a segurança da região. Portanto, semanalmente havia uma reunião presidida pelo secretário geral da cidade, com a participação dos órgãos de segurança locais, equivalentes a polícia federal, ambiental, judiciária, pelotão de forças especiais e Companhia do Exército da Costa do Marfim.

Nessas reuniões, eram levantadas todas as ocorrências acerca da segurança da área. Os oficiais dos países francófonos eram os designados a participar dessas reuniões. Como foi observado que podia comunicar em francês, designou-se este militar para participar dessas reuniões como auxiliar, o que contribuiu para o aprimoramento da competência linguística. Passou-se a acompanhar os francófonos nas missões que exigiam uma maior comunicabilidade em francês, principalmente nas reuniões de segurança e nas inspeções de embargo de armamento.

Nesse Team Site, este militar desempenhou as funções de Oficial de Pessoal e de Logística e, nesta última função, o Team Leader encarregou-me das atribuições logísticas do encerramento dos trabalhos do posto, ocorrido no início de abril de 2016. Nessa oportunidade, era o único da equipe que falava francês, o que me contribuiu com a capacidade comunicacional para a realização da tarefa.

3.4 A promoção a francófono da missão
No mês de maio, a missão movimentou-me para outro Team Site, localizado na cidade de Odienné, no noroeste da Costa do Marfim, uma cidade de maior infraestrutura, com aeroporto, estradas e ruas asfaltadas.

No mês seguinte, após seis meses desempenhando a função de observador militar, fazendo aulas de francês pelo Skype e inserido na vida cotidiana de um país francófono, já estava quase fluente. Isso também foi percebido pelos companheiros de trabalho, oficiais da Sérvia, Gana, El Salvador, Filipinas, Bolívia, Polônia, Coréia do Sul, Zimbabwe, China, Yemen, Bangladesh, Tchade, Níger e Senegal.

Os militares desses três últimos países supracitados eram os francófonos do team site e nas patrulhas de visita às diversas vilas de nossa área de responsabilidade, eles eram os encarregados de interagir com os chefes ou seus representantes a fim de levantar dados pré-estabelecidos e outros assuntos inerentes à missão. Em julho, este militar foi designado a fazer parte da equipe de francófonos do team site, em substituição ao oficial do Tchad, que havia sido repatriado, por término de missão.

Abaixo na figura 3, flagrante do desempenho da função de intérprete do Team Site em visita à vila de Ferkessedougou, localizada a cerca de 10 Km de Odienne e na figura 4, a foto do encontro de segurança realizado em Tengrela Team Site. O segundo militar da esquerda para a direita era o francófono do Team Site, o Coronel Nyelson Nonato, do Togo.

Em Odienne Team Site, além da missão de francófono da equipe, foram desempenhadas as funções de Oficial de Pessoal, Oficial de Inteligência (função exclusiva aos francofônicos) e Oficial de Transportes. No desempenho dessas três funções, a competência comunicacional mostrou-se a mais relevante para o desempenho dessas tarefas.

3.5 Experiências cotidianas
A proficiência em francês também proporcionou-me diferentes experiências cotidianas, a maioria auxiliando colegas observadores que estavam com dificuldade de comunicação. Por exemplo, desde negociação de contrato com locatário, encerramento de conta de luz, contratação de plano de internet, acompanhar a manutenção das viaturas do team site numa oficina local, acompanhar colega que contraiu malária no hospital local, dentre outras. Essas experiências contribuíram para a melhora da capacidade comunicacional e só foram propiciadas pelo investimento pessoal na capacitação linguística.

3.6 A interação no dialeto dioula
Quando foram completados três meses em Odienne TS, constatou-se que a cidade possuía majoritariamente um dialeto, além do francês, o dioula, dialeto de uma etnia que pega o sul do Mali até o norte de Côte D’Ivoir, os malinkés. No entanto, é o idioma do comerciante, do nômade, logo, quase todo marfinense fala um pouco do dioula, idioma dos povos malinkés.

Os seguranças de Team Site Odienne falavam esse dialeto e, como estava-se visitando pelo menos uma vez por semana uma vila local, houve a percepção de que fazia-se necessário aprender alguma coisa básica desse dialeto, como os cumprimentos. Após cerca de duas semanas de interação com os seguranças, os cumprimentos estavam dominados. Dizer saudações como “obrigado”, “até mais”, foi facilitador o suficiente para proporcionar uma experiência ainda mais interessante, pois muitos nativos mais velhos não aprenderam a falar francês porque não foram à escola, uns poucos aprenderam de modo autodidata, mas geralmente eram os mais jovens que faziam a tradução da entrevista.

Quando os cumprimentos das pessoas mais velhas da vila começaram a ser respondidos, causavam uma imensa surpresa: “It dansé” (Bem-Vindo!) ; Anitchê (Obrigado); Inisogmã (Bom Dia!); Initelê (Boa Tarde!); Iniulá (Boa Noite); Ambeô (Até mais!)16 . Essa comunicação no dialeto local tornou a experiência ainda mais rica, sobretudo com um vocabulário mais amplo, que permitiria uma maior percepção da cultura do povo malinké.

Interação com as crianças das vilas visitadas. (Foto: Arquivo pessoal)

Outra coisa percebida foi a influência árabe no norte da Costa do Marfim, pois todas as vilas de maior porte, mesmo nas regiões mais remotas, tinham mesquita para que os habitantes da vila pudessem praticar sua religião. Em algumas poucas vilas, tinham cristãos e muçulmanos, mas estes coabitavam em paz.

Percebeu-se ainda, que o dialeto malinké se misturava um pouco com o árabe. Era comum ouvir um Alá Anitchê! (Obrigado Alá), Inchalá (Se Alá quiser), esta última expressão é árabe. Escolas franco-árabes são comuns nas cidades maiores. A cidade de Odienne tem uma grande mesquita, que é um destaque da arquitetura da cidade.

Essa interação no dialeto dioula, somado com as experiências como francófono de Odienne Team Site por mais de seis meses, proporcionaram a este militar a vivência de experiências únicas por intermédio do uso da língua como instrumento de linguagem, como estudou Saussure.

A maior dificuldade era associar diferentes significantes e significados, por exemplo, a mesma palavra podia ter três significantes e significados diferentes e, quando se pensa de modo fluente, deve-se fazer uma versão, quase que instantânea do que está sendo traduzido.

Portanto, na leitura deste militar, o filósofo Saussure é feliz ao afirmar que “a língua é o palco de fenômenos relevantes”17, pois o domínio de uma língua estrangeira permite uma experiência única, tornando compreensível o que antes era incompreensível, permitindo uma imersão na cultura local. Um analfabeto quando aprende a ler passa a ter uma nova percepção de mundo, passa a ser incluído no sistema. Analogamente, quando se atinge a fluência em um novo idioma, o ambiente torna-se diferente, as coisas passam a ter um maior significado.

16 Tradução nossa
17 expressão utilizada por Saussure no seu Escritos de Linguística Geral, 2004, p. 241.

4 – CONCLUSÃO

O trabalho do Observador Militar é um trabalho de natureza diplomática, pois em um Team Site trabalham cerca de 10 militares, desarmados, de nações diferentes, de culturas diferentes e todos com o mesmo objetivo. A missão vai além do expediente, pois mostra-se ao país do conflito que, militares de diferentes nacionalidades, culturas e religiões podem trabalhar juntos em prol do mesmo objetivo. Podem também se entender, dividir uma casa, dividir as refeições, dividir as contas, desse modo evidencia-se que diferentes países podem viver em paz.

Honraria recebida da ONU. (Foto: Arquivo pessoal)

Ser capaz de falar outra língua estrangeira, além do inglês, é altamente benéfico para os militares. Porque permite que os soldados interajam com as comunidades locais, para onde são destacados em operações de manutenção da paz. A história provou que o apoio da população local é vital para garantir o sucesso de uma campanha militar. Infelizmente, falar inglês não é suficiente quando soldados são enviados para países onde os habitantes não falam este idoma. “Este foi o caso no Afeganistão, onde os soldados dos Estados Unidos não conseguiam se comunicar com a população. Eles não estavam preparados para lidar com a diversidade lingüística do Afeganistão e não tinham tradutores para se comunicar efetivamente com os parceiros locais” (CHAUVOT, 2010, tradução nossa).

Dentro desse contexto, a competência comunicacional e o relacionamento interpessoal ganham mais relevância, pois todos estão capacitados para, como militares, cumprirem as tarefas para as quais foram designados. No entanto, poucos estão qualificados a comunicar-se de modo eficiente, em dois idiomas além da língua materna, o da missão e o idioma local.

Por fim, infere-se que, baseado no relato de experiência abordado no desenvolvimento deste artigo, que a competência comunicacional é muito importante para o êxito em uma missão multidimensional como a experiência relatada no exercício da função de Observador Militar na Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim.

REFERÊNCIAS

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CHAUVOT, Pascale. The Benefits of Language Training for military personnel. 2010. Disponível em <https://www.communicaid.com/business-language-courses/blog/the-benefits-of-language-training-for-the-military-personnel> . Acesso em: 16 ago. 2018.

COÇA, Kaliani Lima. “Desliga senão acaba a Pilha“: O uso de construções formulaicas (…) Dissertação (Mestrado em Lingüística). UFRJ, 2009.

LANGUAGE SKILLS VITAL TO MILITARY SUCCESS. Disponível em <https://dialogo-americas.com/en/articles/language-skills-vital-military-success>. Acessado em 16 de agosto de 2018.

LOPES, Wenceslau de Almeida Lopes. A Gestão de Crise no Exército Brasileiro: A análise sócio-antropológica do cenário. Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social. CEP. Rio de Janeiro. 2008.

LEMKUHL, Marcos. Relatório de término da missão de Observador Militar da ONUCI. 2016

MIHALAS, Phyllis J. Observador Militar das Nações Unidas: Métodos e Técnicas para Servir em uma Missão de Observação das Nações Unidas. Instituto para treinamento em Operações de Paz. 2008. Disponível em: <http://cdn.peaceopstraining.org/course_promos/military_observers/military_observers_portuguese.pdf>. Acesso em: 10 set. 2018.

Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim. Acervo de Odienne e Tengrela Team Sites. ONUCI. 2016.

PEREIRA, Flora. A diversidade linguística africana e suas heranças na formação do português no Brasil. Disponível em <http://www.afreaka.com.br/notas/diversidade-linguistica-africana-e-suas-herancas-na-formacao-portugues-brasil>. Acesso em: 10 set. 2018.

RIVIÈRE, Claude. Introdução à Antropologia, Lisboa, Portugal: EDIÇÕES 70, 2014.

SAUSSURE, F. de. Escritos de Lingüística Geral. 1º. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

SAVEDRA, Mônica Maria Guimarães. O ensino de Línguas Estrangeiras no Brasil: questões de ordem político-linguísticas. Disponível em: <https://bit.ly/2Tenum6> . Acesso em: 12 set. 2018.

SILVA, Karen Alves da Silva. Saussure e a questão da referência na linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2008.

United Nations Department of Peacekeeping Operations. Background Note. DPI/2429/Rev. 18 – April 2014. Disponível em <https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/backgroundnote.pdf >. Acesso em: 11 set. 2018.

SOBRE O AUTOR

Major Aécio durante Missão da ONU na Costa do Marfim. (Foto: Arquivo pessoal)

O artigo “O Observador Militar e os desafios da Competência Comunicacional em Missões da ONU: um relato de experiência“, foi escrito por Antônio Aécio Silva Sousa e apresentado como trabalho no Curso de Comunicação Social realizado no Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, de junho a novembro de 2018, sendo selecionado para publicação eletrônica na Revista Silva.

O autor é major do Exército Brasileiro formado pela Academia Militar das Agulhas Negras, sendo pós-graduado em Ciências Militares e Comunicação Social. É habilitado nos idiomas inglês, francês e espanhol.

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